29/12/2013

Qui Sumus (1)



Conheci o Álvaro da Horta, leitor curiosíssimo, numa festa cujas incidências mereciam sem dúvida um livro dado à estampa. Acontecia que, esperando por dar ganso ou lampreia à barriga, dei por mim entediado a escutar o professor Benguela Fazendeiro. Entre a linguística dura que o homem arrotava e um ou outro arroto por conter, de que de imediato, mostrando maneiras, se desculpava, não imagina quem me leia o interesse com que lhe seguia as frases a dezena de pasmados que ali tinha sido trazida não pelo cheiro a couves da eructação mas pela mercê inesperada de privar com o intelectual. Como estava ali menos pela prelecção e mais pelos rissóis que não chegavam, dei paciência ao apetite e fui ouvir o silêncio do outro lado da sala. Contou-me o Álvaro mais tarde que, no preciso instante em que eu me aproximava, bocejando, do pequeno grupo para o qual ele fora arrastado só pela cortesia de ali estar, alguém dizia, julgando citar o Antero, que depois da morte há escuridão e silêncio – e nada mais. Espreitando pela fechadura das memórias que guardo dessa noite, não me recordo – juro pelo Cão – que se tenha realmente debatido tão grave assunto. O Álvaro, como é seu hábito, não se metia em nada que não fosse matéria de letras, mas garante que dois fariseus, se não mesmo três, por pouco não andavam à pancada para ver quem tinha razão a respeito da metafísica. Verdade ou não, não posso negar que as primeiras palavras que ouvi o Álvaro dizer, em jeito de chalaça e despertando-me de dentro de mim, foram as seguintes: “vina dabant animos”.

Indaga o leitor o porquê da erudição súbita do latim. Paro e explico. Para caricaturar o pugilato verbal a que assistia, e talvez conjecturando a rixa futura, citava o Álvaro aquela parte do poema de Ovídio, como mo revelou pouco depois, em que a morte do centauro Eurítoo, a quem Teseu deu com o crater na cabeça como paga da indecência de ter bebido mais do que devia na boda de Pirítoo e Hipodamia, encoraja os outros centauros, também eles embriagados, a combater ferozmente os Lápitas. Que centauros bêbados e Lápitas aviltados estivessem aqui a ser modernamente substituídos por defensores da imortalidade da alma e epicuristas ignorantes é pouco importante. Para o Álvaro, era gente que bebera de mais, e era o vinho entornado em pança por fartar a causa suprema da berraria. Perguntará ainda o leitor, insatisfeito com a explicação, por que raio deu o Álvaro em latinizar, desde logo, a conversa comigo. De muitos modos poderia responder a isso: porque o Álvaro é assim; porque, sem a surpresa do latim, talvez não tivesse atendido ao que dizia; porque qualquer superioridade moral parece haver em falar de trivialidades com a alquimia do insólito e do gracejo. Não me entenda mal o leitor desconfiado: não há um pingo de afectação no Álvaro. Não tivesse ele percebido em mim uma alma idêntica à dele e tenho muitas dúvidas que não tivesse falado no vernáculo que todos entendem. Disse aquilo, daquele modo, no exacto latim em que Ovídio o disse primeiro, porque reconheceu decerto numa face alheia à dele o enfado que também era o seu. E, convenhamos, nunca a língua de Vergílio teria a influência que tem hoje sobre nós se, pelo contrário, tivesse ele dado com a recordação num verso de Camões, Bocage ou qualquer outra ébria figura das prezadíssimas letras nacionais.

Se esteve com atenção, terá o leitor compreendido que foi por enfado, razão tão plausível quanto outra qualquer, que trocámos o primeiro aperto de mão. Sem grandes demoras, percebemos então que estávamos ali apenas para nos encontrarmos, que de qualquer modo misterioso operava o destino aquela reunião providencial. Caso não saiba o leitor, doutrinado que vai nos cepticismos da contemporaneidade em que habita, nada há deveras importante que escape às velhas fiadeiras, mulheres cansadas que, mesmo dormitando como por certo merecem, tecem, cortam e passam de umas às outras as lãs com que cosem as vidas que, de facto, valem o enlace. Não terão passado dez minutos e os dois pensávamos já, como confessaríamos mais tarde um ao outro, em criar um almanaque literário. A ideia, assim de chofre apresentada, parece agora menos razoável do que nos pareceu na altura. Compreendemos, um e outro, que concordávamos em concordar, ainda que fosse a primeira vez que púnhamos a ideia fixa no assunto, que o principal defeito dos dias que correm é faltar ao mundo uma pitada de clássicos. Quase um século havia passado desde que houvera barafunda de gregos a incomodar a pacatez deste canavial ibérico que estiola, e sentimos que era tempo de repetir a coisa. Seja como for, a ideia do almanaque, como adivinhará o leitor, se a adivinhas for dado, rapidamente degenerou. A Grécia, contudo, não podia esperar. Sem um pouco dela – dizia o Álvaro durante a nossa conversa - não há sociedade que não se abastarde ou caia na sorna de ficar estúpida. E foi assim que, ainda em botão, fecundada pela descoberta imprevista e desenfadada de que não estávamos sós entre tolos, de que havia quem pensava de modo semelhante e de que a Grécia, com um pouco de coragem, se voltava a reerguer, que nasceu a ideia prodigiosa do Sed Contra. Sobre como essa ideia evoluiu, como se lhe deu choco, ou como em pouco tempo se cumpriu na reconstrução deste novo oráculo de Delfos de cinco pitonisas, haverá muito a dizer no futuro.

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