04/01/2014

In Hoc Tempore - A Morte do Borges



Desconheço o evangelho em que vá escrito que um macaco deve comiseração a outro macaco, ou que deve uma galinha simpatizar com a sorte de outra galinha antes de simpatizar com a de um pato. Para todos os efeitos, quem quer que não conheça o rapazito africano que ilustra de tempos a tempos a fome daquele continente não sente por ele, ainda que lhe digam que sim, nada que não possa sentir por uma cana de pesca. Por outras palavras, ser humanitário é estar enganado. A diferença entre um rapazito a quem a subnutrição concedeu honras de capa de revista e um pinguim a levar pauladas em nome da ciência é que o primeiro perde mais tempo a sacudir moscas do que o segundo - e talvez o facto de o rapazito, apesar de tão barrigudo quanto o pinguim, ter menos sardinhas no bucho. Vem isto a propósito, perguntará o leitor a quem o pasmo ainda governa, da morte do Borges, no ano que agora findou, e da discussão em torno de como se deve reagir à morte de alguém que não se conhece e sobre quem haja a opinião de que fica melhor estendido do que de pé. Como se perceberá pelo que vai dito acima, tirando a família e os amigos, não creio que seja passível de acusação quem quer que não lhe tenha lamentado a morte. Merece mais a nossa comiseração aquilo que nos rodeia do que um irmão que nunca conhecemos.

Para dizer a verdade, a morte do Borges tocou-me profundamente, mas apenas porque o Borges, no meu vocabulário quotidiano, era o cão do vizinho, não o economista de quem todos, por uma questão de humanitarismo, ou seja, por engano, disseram palavras bonitas. A morte do António, a mim, pouco ou nada me tocou. Já pelo Borges, fique o leitor a saber, verti lágrimas verdadeiras. O António aparecia na televisão, falava a mesma língua que eu, e, se calhar, até gostava de arroz à valenciana. Mas o António era assim lá longe. Com o Borges tive o prazer de me cruzar várias vezes; em diversas ocasiões lhe afaguei o pêlo enquanto cumprimentava o dono; até uma ou outra vez vi ficar irritado quem lhe pisou distraidamente os dejectos. Por que razão haveria eu, que nunca apertei a mão ao António nem sei nada sobre o seu sistema excretor, de me comiserar mais pela morte dele do que pela do Borges? E, caramba!, não pode um ser humano comum, um ser humano a quem não foi dado o privilégio de conhecer de Amália Rodrigues senão os fados que cantou, ter chorado menos a morte da fadista do que a da lontra que dela herdou a etiqueta a que chamam nome?
Aqueles que defenderam a lástima do sucedido usaram, no entanto, um outro argumento, além do comportamento humanitário que acham devido a quem é da mesma espécie: o ter sido um homem de convicções. Também neste caso, porém, me parece frágil a teoria. Não faltam exemplos, a quem saiba um pouco de História, de homens de convicções que, em última análise, não mereciam a comiseração de ninguém. Erra tanto aquele que faz erradamente alguma coisa por convicção quanto aquele que o faz erradamente por acaso. Pode o leitor pensar que não, mas ter convicções é como ter borbulhas, e a infâmia tanto reverdece em quem é afligido por males cutâneos como em quem tem o rosto polido e bem tratado. Tal raciocínio, de resto, não é sequer necessário, se atendermos à razoabilidade de perceber que, ao referirem as convicções do António, aqueles que apareceram de chofre a comentar-lhe o último embarque mais lembraram um chavão do que proferiram uma verdade. Lembrar as convicções de um morto, como aliás exigir o respeito de todos aqueles a quem a genética fez parecidos, não é senão parte da extremíssima unção que a todos os que passaram pela vida, o que quer que tenham feito, julgam ser devida. Não deve, por isso, ter mais seriedade que a pouca que tem o ritual a que pertence, até porque, se bem vistas as coisas, facilmente se percebe que só com a desculpa ritualística pode alguém cometer a asneira de achar honesto lembrar tal coisa.
Menciono a honestidade dessa lembrança porque não terá com certeza passado despercebida, nem mesmo aos mais desatentos, a espectacular pirueta do António, ele que era um dos mais vociferantes defensores da política de austeridade até então, quando, poucos meses antes de ir ressonar para dentro, declarou que Portugal não precisava de mais austeridade. Como as circunstâncias que justificavam a opinião não se alteraram (nenhum defensor convicto da austeridade mudou, aliás, de opinião, à excepção do António) e como nenhum ptolemaico passa a ser copernicano do dia para a noite, sem uma razão forte, tamanha mudança de opinião requer explicação. Ora, poderá um cancro no pâncreas causar a metanóia tanto quanto a queda de um cavalo a caminho de Damasco? Embora a doença o acompanhasse já há algum tempo, é provável que a esperança - que não costuma ser das primeiras coisas a abandonar os moribundos - fosse subsistindo enquanto o diagnóstico da irreversibilidade ia sendo protelado. Sem essa esperança, resta contudo a quem finda a cobardia de pedinchar por um milagre. E, por milagres, os homens abdicam de tudo, até das suas convicções mais profundas.
À falta de melhor explicação, há pois suficiente plausibilidade em acreditar que o António mudou de convicções, não obstante a linearidade com que lhe descreveram a vida no momento da morte, pela tolice de achar que uma boa acção talvez lhe salvasse a vida. Lembra-me esta relação entre comportamentos de bons cristãos e acontecimentos desejados um dos episódios infantis de que menos me orgulho. Era miúdo, tinha a minha avô doente, e jogava o Benfica, para as competições europeias. Tendo o jogo começado a correr bem, senti necessidade de ressarcir quem quer que me estivesse a propiciar aquela alegria, e fui a correr para o leito da minha avô. Lembro-me de pensar, com uma infantilidade que agora repudio, que talvez o jogo de futebol continuasse a decorrer conforme desejava, se lhe fizesse alguma companhia e a ajudasse a beber o chá. E assim procedi, contente por a minha acção estar de facto a produzir o efeito esperado. Foi, sem dúvida alguma, o primeiro comportamento piedoso de que tenho consciência. E foi por ele que aprendi, embora muito tempo mais tarde, que comportamentos piedosos são, na sua essência, cartas escondidas na manga de que nos servirmos para trapacear as vontades providenciais. Hoje sei, leitor compreensivo, que há pouquíssima piedade num comportamento piedoso, que levar o chá à boca de quem está doente é o óbolo pelo qual se trocam os favores celestes. Na altura, porém, não o sabia. Desejava muito uma coisa, e achei que podia obtê-la pela batota do comércio.
Serviu este apontamento confessional, portanto, para mostrar como trocar boas acções por coisas que se desejam não é apenas mau negócio, como pensarão todos aqueles que, desconfiando da metafísica, não depositam porém a atenção na lógica, mas sobretudo um negócio imoral. Pior do que a estupidez de acreditar que uma mudança de convicções pudesse devolver-lhe a saúde, cometeu o António a imoralidade de rechear a bolsa a Caronte para que o barqueiro lhe adiasse a travessia. Nada disto poderia algum dia ter feito, por seu turno, o Borges, não só porque nunca o vi preocupado com a saúde como porque tinha pouco jeito para os negócios. Não, o Borges não era cão para mudar de convicções sem mais nem menos; nunca deixou de ladrar aos gatos que passavam e nunca deixou de abanar a cauda satisfeita quando lhe batiam na tigela a avisar que havia guisado. Nem mesmo quando, nos últimos meses, passava os dias deitado, aos pés do dono, a arfar como se tivesse corrido atrás de duas lebres, provavelmente com dores por todo o corpo, o coitado.
A morte do Borges, sim, excitou em mim aquilo que dizem que devo a criaturas como o António. E, se neste epitáfio incomum, ao sentenciar o que de cada um deles deve a posteridade reter, pareço defender que há mais tristeza em finar-se um cachorro do que um economista não é porque pense que, de maneira geral, os cachorros merecem mais as linhas do obituário do que os economistas, mas porque este cachorro particular, este cachorro que me babava os dedos quando o acariciava e que, muito disciplinadamente, sempre trazia até mim o pau que eu atirava, me deu mais horas felizes do que um economista a quem nunca apertei a mão, e também porque era afinal mais íntegra a sua alma canina, mesmo quando já se desenrolava a mortalha com que haveria de ser tapada, do que a alma do economista pela qual todos acharam merecido, por lapso ou pelo mesmo negócio imoral, que se lacrimejasse abundantemente. De que me serve ao cálculo da comiseração que devo a cada um deles o argumento de que o António era mais humano do que o Borges, se estava menos próximo e era afinal menos piedoso do que ele?

 

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