13/03/2014

Sed Contra - Um Quase Charlatão



I

Quando Júlio César atravessou o Rubicão, proferindo o imortal alea jacta est com que entregava a alma magnanimamente, e à frente das suas legiões em Roma entrou em triunfo, nenhum patrício se distraiu de aclamá-lo. Podendo o esforço chegar a tanto, imagine quem o conseguir que na cidade das sete colinas, já não a primeira imperando estendida sobre o Lácio, mas uma réplica, à escala, onde aportou sem querer um dia o traiçoeiro vencedor de ciclopes, entrava um dia, montando não o seu nobre Genitor, mas uma carruagem puxada por asnos a quem se lhes deu, talvez por erro, o dom da fala, um outro Júlio César, mais gordo, risonho, e desajeitado. Imagine de seguida, com a paciência que tiver reservado para o feito, que a este César barrigudo recebia a plebe com uma ovação ainda mais estridente, alguns beijando-lhe o anel no dedo, outros estendendo-lhe a mão humilde, uns quantos trocando palmadinhas de amigo, mas todos numa histeria tal que, se houvesse genuflexório onde deixassem pousar os joelhos, seria na posição católica que o saudariam.

José Paulo Cavalcanti Filho atravessou um Rubicão mais largo e fundo do que aquele que Júlio César teve de atravessar – logo por aí se podendo perceber o tamanho da proeza – e chegou a Lisboa, no mês de Abril do ano de 2012, com uma nova biografia do nosso Fernando Pessoa. Digo mal. Aquilo que trouxe, como muito modestamente lhe chamou, foi uma autobiografia. Continuo a dizer mal: uma “quase autobiografia”, assim é que está certo. Está certo, porém, sem o estar. É que, se uma biografia conta a vida de alguém, e se uma autobiografia conta a vida do alguém que a escreve, uma “quase autobiografia” pode, na verdade, ser muitas coisas. Pode ser, em primeiro lugar, como, certamente sem presunção de espécie alguma, terá desejado o seu autor que fosse, uma biografia que bem poderia ter sido escrita pelo punho do próprio biografado; ou seja, uma biografia que seria quase uma autobiografia. Pode ser, em segundo lugar, uma autobiografia que, por qualquer acidente (falta de memória, imposição editorial, ou até um qualquer imprevisto ao cuidado de São Fiacre), tenha fortuitamente ficado incompleta; ou seja, um livro que quase conta a vida do alguém que o escreve. Mas, não se devendo enjeitar quaisquer possibilidades, pode ser que seja ainda uma autobiografia que, devido à natureza peculiar daquele que a escreve, se refira a alguém que não exista propriamente; ou seja, um livro que conta a quase vida do alguém que o escreve. Uma quase-auto-bio-grafia, uma auto-bio-quase-grafia, ou uma auto-quase-bio-grafia: eis as três hipóteses que espantosamente se catalogam. Sugerindo-nos o exame do título tão evidente ambiguidade, urge tentar perceber qual das três hipóteses melhor se adequa àquilo que é o livro deste César com apetite.
Embora, à primeira vista, pareça a primeira hipótese a mais razoável das três, sobretudo por facilmente se perceber que corresponde à intenção com que escolheu o título o seu autor, é precisamente aquela a que sensatez de um crítico com juízo mais depressa se deve atirar. Guardam-se para esse mesmo efeito, mais pelo número do que há a referir do que pela dificuldade em fazê-lo, a larga maioria das linhas que seguem, não esquecendo a promessa, que afinal aqui me trouxe, de tornar claro qual das três possibilidades acima rabiscadas mais cristalinamente reflecte o empenho dactilografado de José Paulo Cavalcanti Filho. Sem saltar etapas, nem tentar chegar a conclusões prematuras, deve o raciocínio seguir a sua estrada. A seu tempo há-de esta folha ir dar ao que importa. Para já, estude-se o que leva a primeira possibilidade a estudar, e afira-se o que houver de se aferir, se houver aferição a fazer.

II

Disse-se, talvez com pouca gravidade, que à primeira das hipóteses correspondia a intenção do autor. Não pode haver dúvidas quanto a isso: o próprio assim o confirma. Põe-se o problema, porém, de as intenções de um autor valerem tanto quanto vale o autor delas. Tal como se tratam os filhos dos amigos como se fossem nossos filhos, oferecendo-lhes chocolates e guloseimas de toda a sorte, é com respeito que devem ser tratadas as intenções de um grande autor; a um estúpido, porém, conquanto devamos a nossa condescendência, não há por que estimar o que intenta. Como não é sabido ainda, jovem que é esta análise, a que extremo é merecido o ajuste, é por defeito que se impõe a continuação. Que o autor tenha as intenções que desejar ter! Enquanto não se souber, por decreto das conclusões a que se chegar, qual a filiação lógica do seu espírito, nenhuma intenção lhe valerá o escusar-se a análise que se segue. Que se inicie, pois, o que há para iniciar.
De uma só maneira descubro possível uma biografia poder ser afinal uma quase autobiografia: ter o biógrafo recebido do biografado a bênção para contar a vida do segundo tal qual ele a contaria. Nada, aliás, mais comum: quase todas as biografias que hoje se publicam se escrevem obedecendo a um acordo deste tipo, e quase todas elas são, no fundo, “quase autobiografias”. Parece-me, contudo, difícil que alguém que não diz uma palavra vai para mais de três quartos de século tenha perdido um minuto a abençoar quem quer que seja. Aceite-se, ainda assim, a dificuldade. Mas por que razão Fernando Pessoa, podendo escolher para lhe escrever as memórias, com a facilidade que é reconhecida a quem habita o Além-Mundo, qualquer mortal que do lado de cá mantenha a firmeza de ir andando, haveria de optar por um ex-ministro do governo de José Sarney com jeitos de tartaruga de carapaça à frente? Apesar de asseverar o quase autobiógrafo, sem receio de que o internem, que andou em tempos a correr atrás do fantasma de Fernando Pessoa – ignorando talvez a velha regra das histórias de fantasmas segundo a qual são os homens que fogem à frente dos fantasmas e não o contrário –, não há lógica que refute a pouca lógica da situação.
Pendure-se, porém, a incredulidade num cabide provisório, e teste-se esta primeira possibilidade com as revelações, a respeito da vida e da obra de Fernando Pessoa, que este César sadio confecciona no seu livro acabadinho de trazer, em circunstâncias ainda mais heróicas do que as camonianas, dessa Gália de Além-Mar. Antes, uma advertência: se é misturada com a entrada de César em Roma e com a salvação a nado d’Os Lusíadas que apresento o forrobodó da chegada de José Paulo Cavalcanti Filho a Lisboa, com um livro grosso e um séquito de tolos, não é por arbitrariedade, erudição, ou graça que o faço, mas porque merece o tributo de assim ser emparceirado a um homem de estado e a um homem de letras um indivíduo que, embora não pareça, tenta ser as duas coisas. Fornecida a explicação, dê-se por terminada esta introdução, e inicie-se a consulta.
O que revela, afinal, José Paulo Cavalcanti Filho no seu livro que valha a honra de ser mencionado? Muita coisa, a fazer justiça à atenção que lhe tem sido dada desde que chegou. A primeira afirmação, controversa como são todas as afirmações de quem afirma alguma coisa, é a de que a obra de Fernando Pessoa estava já muito bem estudada, razão aliás pela qual aquilo que fez foi investigar a vida e não a obra do poeta. A generosidade de José Paulo Cavalcanti Filho para com os estudiosos de Pessoa peca, contudo, por ingénua. Querendo justificar o ângulo de investigação adoptado com a competência e a abundância dos que lhe estudaram a obra, descuida-se de cuidar que não só há ainda muita obra por descobrir, como fraca é a qualidade geral dos estudos sobre a grande maioria da obra descoberta. Não obstante, assim justifica o interesse em biografar o nosso poeta.
Faltando-lhe, todavia, um método, e não havendo dados biográficos novos que justificassem afinal o trabalho de dar à estampa um renovado conjunto de mexericos, de que se veio a sua alminha de glutão a lembrar? Nem mais nem menos do que fazer da “Tabacaria”, poema que, de entre todos os de Pessoa, era o que mais estimava, uma janela para a vida privada do poeta. E assim, rasurando, sem pedir licença, a distinção implícita entre uma notícia e um poema, bradou para si este Arquimedes, de dentro de uma banheira que, com certeza, entornava, que as faculdades poéticas que tanto tinham custado a Fernando Pessoa adquirir eram equívoco de gente que não percebera que tudo o que dizia lhe passava afinal à frente dos olhos. Que filão maravilhoso possuía agora! Convenientemente escondida na obra estava afinal – assegura-nos José Paulo Cavalcanti Filho – a vida inteira do próprio Fernando Pessoa. O poeta não fazia poesia; escrevia um testamento. Pobres dos críticos que não o tinham percebido! Tudo o que, portanto, era preciso para ficar a conhecer-lhe a vida era contratar o Sherlock Holmes que descobrisse quem fora cada uma das pessoas e cada um dos locais referidos na obra de Fernando Pessoa, talvez um que, acenando-lhe com a quantia certa, fechasse os olhos às descobertas que não convinham, para não sobrarem surpresas desagradáveis no final. Nunca um método de investigação – poder-se-á dizê-lo com segurança – conviera tanto às descobertas que se queriam protagonizadas. Shinichi Fujimura, o famoso arqueólogo japonês, não teria feito melhor.
Assim – diz-nos o César afinal nipónico – a lavadeira do poema chamava-se Irene, e tinha uma filha chamada Guiomar por quem possuía Fernando Pessoa uma paixão secreta. Embora os mais competentes neurocientistas dos nossos tempos continuem com dificuldades em cartografar as emoções de quem anda vivo, parece haver quem, recorrendo apenas a dois versos, consegue aceder aos sentimentos de um finado. Garante-nos também que o “Esteves sem metafísica” existiu, que Fernando Pessoa fizera Álvaro de Campos nascer a 15 de Outubro porque era a data de nascimento de duas figuras literárias que admirava, Virgílio e Nietzsche, que fora para Newcastle-upon-Tyne (embora em algumas entrevistas cometa o lapso, afinal muitíssimo desculpável, de dizer que fora para Stratford-upon-Avon) porque Eça de Queiroz aí fora cônsul, e que a única razão para ser engenheiro naval era possuir preciosamente um primo que o era, argumentando que só assim se poderia explicar alguém licenciar-se em engenharia naval na Suíça.
Analisem-se, com a justeza que vier, cada uma destas ideias. A admiração de José Paulo Cavalcanti Filho por Fernando Pessoa é genuína e indesmentível, e isso talvez desculpe a bebedeira da referência ao país alpino. Aliás, se Fernando Pessoa não estivesse completamente bêbedo, como defende o autor que sempre estava, por certo que teria feito o engenheiro licenciar-se na Suíça e não na Escócia, como efectivamente fez. Desculpando-se a última das asneiras, regresse-se à primeira. Haverá razões para o Esteves existir mas as Chloes e as Lydias com quem constantemente dialoga Ricardo Reis não? Com certeza que não há, pois Fernando Pessoa só escrevia sobre o que lhe andava à volta. É esse, pelo menos, o argumento grandioso do biógrafo. Mas, então, como ler o que diz o seu queridíssimo Álvaro de Campos, quando afiança o seguinte?:

As figuras de amadas, que aliás não existem como figuras, nos versos de Ricardo Reis são abstracções às avessas, ou vistas do avesso. Não são abstracções no sentido de serem abstractas, mas no sentido de terem apenas a realidade necessária para serem consideradas como existindo. São Chloes, Lydias e outras romanidades assim, não porque não existam, mas porque para o caso tanto vale ser Chloe como Maria Augusta, e, ao passo que esta última faz supor uma costureira, ou coisa parecida, com a agravante de o poder ser deveras, a gente sente-se realmente pagão com a Lydia.

Embora inaplicável à obra de Ricardo Reis, conceda-se que talvez seja cedo para diagnosticar ao método a ineficácia que, neste caso, inequivocamente manifesta, e salte-se para a próxima ideia. Admirações literárias, Virgílio e Nietzsche? Diz bem o nosso César? E Anatole France? Admirá-lo-ia porventura assim tanto Fernando Pessoa? Atendendo a que fez Alberto Caeiro nascer no mesmo dia, diríamos inequivocamente que sim. Podendo escolher entre 26 de Abril, dia do nascimento de Shakespeare, 9 de Dezembro, dia do nascimento de Milton, 4 de Agosto, dia do nascimento de Shelley, ou até 31 de Maio, dia do nascimento de Whitman, por que razão sombria escolheria Pessoa, para apadrinhar o nascimento de Álvaro de Campos, justamente Virgílio e Nietzsche? Mas, que diabo!, não nos demore a perplexidade inutilmente, e avancemos para Eça de Queiroz. Assegura-nos José Paulo Cavalcanti Filho que leu de fio a pavio, várias vezes, a obra de Pessoa, mas ainda assim foi capaz de considerar que o poeta teria estima suficiente pelo prosador para fazer o seu heterónimo passar ficcionalmente por onde o outro pusera o pé verdadeiro? Claro que isto somente quando não toma Eça de Queiroz por Shakespeare.
Que mais nos revela? Que aos heterónimos pessoanos é dada mais importância que a devida, que a ideia surgiu de Kierkegaard, e que, tal como o filósofo dinamarquês, que no final da vida abandonou a prosa em nome de outrem para escrever sob o seu próprio nome, Fernando Pessoa também teria intenção de abandonar os heterónimos. Vale a pena discutir esta revelação? Tudo vale a pena, se a boçalidade não é pequena. É tão fácil aproximar Kierkegaard de Pessoa quanto cair no erro de fazê-lo. Escreveram ambos em nome de outros, e isso justifica a associação; fizeram-no por razões diferentes, e de modo absolutamente distinto, e isso desaprova-lhes a fraternidade. Kierkegaard nunca quis que o associassem ao que escrevia, e para isso escreveu em nome de outros. Quando foi desmascarado, deixou de haver utilidade em fazê-lo. Não só é pouco provável que Pessoa conhecesse a obra de Kierkegaard, como é deficiente a conjectura de que lhe copiou a táctica. Pessoa fê-lo por razões literárias, e só por elas. E será que dormitava José Paulo Cavalcanti Filho durante a leitura da carta a Armando Côrtes-Rodrigues em que Fernando Pessoa chama insinceras a todas as coisas que não foram feitas em nome de Caeiro, Reis ou Campos? É provável que sim. Afinal, toda a gente merece descanso. Nada disto, desdizendo o que desdiz, contraria porém a possibilidade de, no final da vida, Fernando Pessoa ter mudado de ideias quanto à produção heteronímica. Mas como escolheu despedir-se daquele “fato único que vestira”, tanto quanto dizem, com uma citação em inglês de Horácio, “I know not what tomorrow will bring”, é pouco credível que não andasse ainda a saltar de galho em galho nas suas ideias o mesmo Ricardo Reis de antes. Condescendam-se-lhe, no entanto, as falhas, e não se lhe ralhe nem pelo sono, nem pelo esquecimento.
É também através de esquecimento, genuíno ou fabricado, pouco importa, que forja a afirmação de que Fernando Pessoa datava arbitrariamente as suas composições, dando para isso o exemplo de que quase 100% dos poemas de Alberto Caeiro foram escritos depois de 1915, data escolhida por Pessoa para lhe dar óbito. Tendo já ficado demonstrado, no início deste exame, que o nosso César de marcha balouçante possui a particularidade engraçada de fazer um uso ambíguo da palavra “quase”, talvez não surpreenda ninguém que se declare que uma boa porção dos quase 100% dos poemas de Caeiro, talvez perto de um terço deles, tenha sido afinal escrita durante o ano de 1914.
Ficam por aqui as estridências do biógrafo? Com aborrecida decepção reagiria, se descobrisse que sim, quem começa a entusiasmar-se com os efeitos da embriaguez do assunto. Não se lhes faça tamanha descompostura! Confessa, pois, este César diletante quase ter persuadido um grupo de coveiros a abrir a sepultura de Mário de Sá-Carneiro, em Paris; afiança ter reunido uma equipa médica que, provavelmente pelas mais modernas artes de Asclépio, concluiu que o diagnóstico da morte de Fernando Pessoa estava errado (fora de pancreatite que morrera, e não de cirrose hepática), certifica ainda 127 heterónimos, acrescentando 55 aos 72 que Teresa Rita Lopes assegurara anteriormente, e identifica um total de 206 assinaturas diferentes.
Não obstante Jerónimo Pizarro e Patrício Ferrari terem entretanto, no decorrer do ano 2013, catalogado 136 nomes fictícios de algum modo usados por Pessoa, assumindo assim a dianteira dos que acham que conhecer bem um autor é conhecer muitas trivialidades acerca desse autor, Teresa Rita Lopes reagiu de imediato às novidades trazidas por este César de largas medidas, decerto desagradada com a superação da marca olímpica, e manifestou, sem o escrúpulo da delicadeza que é habitual em académicos ofendidos, o seu desapreço pelo trabalho pouco rigoroso do biógrafo. Tal reacção motivou, por sua vez, a réplica de José Paulo Cavalcanti Filho, que, desculpando a estudiosa pelo estado de embriaguez em que o acotovelou, lembrou que o seu livro ganhou um magnífico prémio na sua Gália de gente feliz. Não faço questão de me intrometer em cotoveladas alheias, mas fundamentar qualidades literárias de um livro que, segundo o autor, foi escrito para pessoas comuns, para o povo, de modo simples para chegar a todos – ou seja, um livro que foi escrito para estúpidos – com o número de vendas que atingiu ou com o número de prémios que recebeu não é uma forma fraca de lhe defender a honra entretanto violada? Haverá maior glória em descobrir que muitos foram os estúpidos que leram um livro escrito expressamente para estúpidos do que em descobrir que, atraído pelo cheiro a queijo, o rato fugidio jaz entalado na ratoeira para ele expressamente preparada?
Escuso-me da resposta, e avanço. Avanço, mas voltando atrás, que é para onde o avanço me requer que volte. Não foi apenas aos problemas de pâncreas de alguém que morreu há quase oitenta anos que as habilidades clínicas do biógrafo chegaram; jura que Fernando Pessoa tinha 12 dioptrias, que usava óculos de 3, que, por isso, via apenas sombras, e que o fazia por ser vaidoso. Ora, quem com atenção andar seguindo as brilhantes revelações de José Paulo Cavalcanti Filho deverá neste ponto juntar a suspeita de achar esquisito que alguém que, por vaidade, preferia ver somente sombras, pudesse afinal estar à janela, olhando para a “Tabacaria de defronte”, e distinguisse quem quer passasse. Assim se anula, circum-navegando-se, a teoria deste César de suspensórios. Quem quer que ponha crença nesta última revelação, com o lápis da censura depressa riscará o porto de partida teórico que a ela o fez chegar; quem, por outro lado, preferir não o fazer, acreditando que o deslize se explica por qualquer engano que não vale o esforço do diagnóstico, o melhor que tem a fazer é continuar a aceitar a teoria sem necessariamente lhe aceitar todos os resultados. Assim se salva da açorda de inconsistências a que o força o redemoinho das conclusões.
Havendo, todavia, interesse em perceber a obscuridade, abra-se o livro na página certa, e leia-se por que excelentíssimos meios chegou o biógrafo à conclusão que lhe desmonta a inteira tese: uma receita de oftalmologia em que se lê distintamente duas coisas, “–3D” e “12 graus”, e a interpretação inusitada de que, embora o exame tivesse revelado que Fernando Pessoa precisava de corrigir 12 graus de miopia, prescrevia o médico, provavelmente persuadido pelo poeta de que não queria ficar com os olhos pequeninos, umas lentes de 3 dioptrias. Acreditar que (tal como o biógrafo persuadiu o seu oftalmologista – como conta – a pôr-lhe lentes que o fizessem ver como um paciente com 12 dioptrias de miopia e óculos de 3, e a ir para a rua nesses preparos) qualquer paciente pode persuadir um médico a passar a receita que mais lhe convém à vaidade até se aceita. Assim se aceita também, ainda que se torça o nariz à competência da pessoa, que haja médico que, desse modo persuadido, prescreva duas coisas contraditórias na mesma receita. O que me parece mais difícil de aceitar é que se regozije alguém de ter contratado uma junta médica para aferir a causa da morte de uma pessoa que não anda viva há quase oitenta anos, e não se aproveite a mesma junta médica para aprender que “–3D” significa miopia de 3 dioptrias, mas que os “12 graus” diriam provavelmente respeito, como em qualquer receita oftalmológica, ao eixo do astigmatismo. Preocupado com a vaidade alheia, envaideceu-se o César com as suas teorias infundadas.
Carecem ainda de apontamento dois outros testemunhos oraculares: que Álvaro de Campos começara a escrever homossexualmente, seja lá o que isso for, deixando porém de fazê-lo por volta de 1919, e porque Pessoa conheceu Ophélia Queiroz; e que o livro de poemas de Eliezer Kamenezky, Alma Errante, não terá sido escrito pelo judeu russo e prefaciado por Fernando Pessoa, como até aqui se julgava, mas inteiramente escrito, a troco de algumas moedas, pelo próprio Pessoa. O que tem a dizer a minha pena sobre o primeiro? Que, a ter trocado, como é dito que trocou, a carne e osso dos rapazitos com quem se divertia pela conjugal possibilidade de passar o resto da vida sem diversão, muito se deve ter arrependido o pobre do Álvaro de Campos.
Quanto ao segundo, é talvez importante avisar o biógrafo – e para isso se escreve este parágrafo – que a infalível pedra de toque que considera ser, uma vez que – diz-nos com vaidade – identifica com facilidade citações falsamente atribuídas a Fernando Pessoa, deve andar a precisar de alguma limpeza. Qualquer poalha ou farinha contaminadora tem com certeza reduzido o acerto com que os riscos na pedra têm sido lidos, pois engalanar de feições pessoanas versos como

Ó minha querida!
Onde estarás tu?
Onde estarás?
Ardo de amor.
Rogo-te pela terra e pelo céu,
Vem para o pé de mim!
Vem!

não pode ser senão consequência do uso de material em mau estado. Quando se mexe em instrumentos de precisão – talvez não o saiba o nosso César de Pernambuco, tanta é a dedicação à arte inversa – é preciso ter muito cuidado com a limpeza e com a calibragem. Sem elas, pode a mais notável rainha passar por plebeia, e um imperador por vir por um alegre comilão.
Feitas as contas ao que disse e ao que deixou por dizer, é a contragosto que me vejo forçado a anunciar que, tendo chegado ao fim o exame da primeira das três hipóteses, só muito generosamente poderia alguém a quem não pediram ainda para preencher os papéis do hospício aceitar que deixaria Fernando Pessoa que lhe escrevesse a vida alguém que se constitua como se constitui afinal este César curiosíssimo. E como é que se constitui? Não o conseguindo expressar de modo claro e sem rodeios, para esse efeito guardo o parágrafo que se segue.
Há quem tenha por desejo supremo amealhar grandes fortunas. Outros há, igualmente dados aos prazeres mundanos, que se contentam com bons vinhos, grandes quantidades de leitão no prato, e esbeltas mulheres ao lado de quem possam ressonar. Os mais humildes seriam felizes se tivessem o pouco que lhes bastasse para ir adiando o dia de ir dormir. Há ainda aqueles, uns mais honrados que outros, cujo único apetite é inscrever a letras douradas o seu nome nas lápides da posteridade. Em minhas aspirações nunca estas coisas enraizaram simpatia. O que sempre quis, aquilo porque verdadeiramente ansiei, desde que me lembro de ter a aptidão de ansiar alguma coisa, foi poder usar a palavra “chalupa” sem que soasse a estrangeiro o uso que lhe dava. Eis, por fim, a oportunidade. José Paulo Cavalcanti Filho é, no que me é dado a perceber – e aqui concluo o meu exame psicológico – pouco mais do que um César chalupa.
A estirpe do que quer que o faça assim chalupa deve, no entanto, ser daquelas que contagiam, pois à sua volta não parece haver um único ser vivo que não sofra do mal de parecer tão chalupa como ele. Os que o receberam de braços abertos em suas casas, os que lhe enfiaram nas orelhas a coroa de louros do mérito literário, os jornalistas que, convidando-o para uma entrevista, se esqueceram do profissionalismo de investigar o que os especialistas teriam a dizer sobre as revelações agora publicadas, cada um dos toscos gladiadores que, em suma, exclamando o Ave Caesar morituri te salutant, escandalosamente aceitaram fazer parte da festarola que, do alto da tribuna do seu coliseu, este César aplaudia, cada um deles, sem excepção, me parece merecer o diagnóstico recomendável de ser um pouco chalupa.
Se, como se demonstrou, só podia esta biografia ser aceite como quase autobiografia, como o desejou o autor, caso o biógrafo candidato a quase autobiógrafo merecesse o prémio de ser quase como o biografado, e se, pelo exercício de exclusão de partes em que se deteve esta análise nas últimas páginas, o mais honroso que se pode dizer do candidato é que é ligeiramente chalupa, não há como duvidar: esta biografia não é uma quase autobiografia. De resto, não faria mal lembrar o exemplo de Bernardo Soares que, invejando aqueles de quem se podiam escrever biografias, reclamava:

 Que há-de alguém confessar que valha ou que sirva? O que nos sucedeu, ou sucedeu a toda a gente ou só a nós; num caso não é novi­dade, e no outro não é de compreender.

Quisera Fernando Pessoa biografar-se, e tê-lo-ia feito através da sua “autobiografia sem factos”, da sua “história sem vida”. Se não o fez, é porque de nada adiantava fazê-lo. Só como distracção, e porque “viver é fazer meia com uma intenção dos outros”, é que fazer autobiografia era coisa que aceitasse. Ao aspirar a fazer uma coisa como se pudesse ter sido feita por Fernando Pessoa, ignorando que o poeta jamais a faria, o nosso biógrafo só poderia portanto realizar outra coisa. Assim se exclui, deste jeito irrefutável, a primeira das três possibilidades, prometendo ainda mais breve e esclarecedora a análise das duas que faltam.

III

Relembrem-se as duas hipóteses que sobram: ou se trata de um livro que quase conta a vida do alguém que o escreve, um livro, portanto, incompleto; ou se trata de um livro que conta a quase vida do alguém que o escreve, obra e feito de alguém que, portanto, quase existiria, se tivesse modo de poder existir. Ora, a segunda hipótese facilmente se rejeita abrindo o livro como deve ser aberto, ou seja, na última página. O exercício é simples e inequívoco: está completa a obra. Resta, por isso, a terceira possibilidade. Se a palavra “quase” que antecede a palavra “autobiografia” não merece associação, como se demonstrou que não merecia, nem com “auto”, como sugeria a primeira hipótese, nem com “grafia”, como sugeria a segunda, se, no fundo, o que realmente está em equação não é nem algo que tenha sido quase feito pelo próprio nem algo que tenha ficado quase grafado, resta a possibilidade derradeira de considerar que é em “bio” que a palavra “quase” mais apropriadamente entalha, e que é a algo que possui quase vida que, talvez inesperadamente, tudo isto se reporta. Prossiga-se, portanto, da única coisa inteira e certa de que é possível prosseguir, que é haver produto autógrafo, e cumpram-se as diligências necessárias para desmascarar aquele que, quase sendo, tanto o grafou como a respeito de si próprio o fez.
Apresente-se, por artes lógicas, as bases do problema tal qual ele se apresenta neste momento: a) algo foi escrito; b) o que foi escrito é sobre aquele que o escreveu; c) aquele sobre o qual foi escrito algo quase existe. Que deduções se podem extrair daqui? Duas só: a de que 1) aquele sobre o qual foi escrito algo é a mesma pessoa que aquele que o escreveu, coisa sobre a qual, havendo atenção, não podia deixar de haver suspeita; e a de que 2) existe, escrito por quem quase existe, algo acerca de quem quase existe. É possível? Diz-nos a lógica que sim! Resta pois averiguar, e para isso se fará o obséquio de esforçar a razão, quem é que quase existe que assim escreve sobre si mesmo. As circunstâncias são então as seguintes: há uma obra cujo título demonstra que, ao contrário do que inicialmente se pensara (que fora escrita por alguém alegadamente vivo, José Paulo Cavalcanti Filho, e que era sobre alguém alegadamente morto, Fernando Pessoa), não só 1) aquele que escreve e aquele sobre quem escreve são afinal a mesma pessoa, como 2) essa pessoa quase existe. Ora, como quem quase existe está mais perto de quem está morto do que de quem vai vivo, poder-se-ia pensar que toda esta montanha-russa dedutiva tivera por fim demonstrar que a biografia de José Paulo Cavalcanti Filho fora afinal escrita, por quaisquer meios mediúnicos, pelo próprio Fernando Pessoa, e que era afinal correctíssimo, como o propusera o autor que afinal não o era, chamar-lhe “autobiografia”. Acontece, todavia, que ficara já estipulado que tal dedução é absurda. Sobra, portanto, a mais inesperada das conclusões, e uma dupla revelação: a de que 1) sendo José Paulo Cavalcanti Filho o autor, é sobre ele também, e não sobre Fernando Pessoa, que afinal versa a obra que assina, e a de que 2) José Paulo Cavalcanti Filho quase existe.
Surpreenda-se quem for dado a surpresas; boceje quem for de outro modo. Negar esta conclusão, por ridícula que pareça, seria negar o raciocínio, aliás irrepreensível, que trouxe até ela. Sobre a ideia de que a obra é uma biografia de José Paulo Cavalcanti Filho e não de Fernando Pessoa, lembre-se que, sem qualquer embaraço, explicou já várias vezes o primeiro que sempre quisera ler um livro sobre o segundo que não existia, um livro que falasse do poeta como ele precisava que falasse, e que, por não existir tal livro, decidira escrevê-lo. Haverá maior evidência do truque do que esta? Faltavam às prateleiras das grandes bibliotecas uma obra que suprisse certas necessidades de alguém; não havendo ninguém que escrevesse tal obra, decidiu fazê-lo aquele cujas necessidades a existência de tal obra viria suprir; logo, aquele cujas necessidades seriam supridas escreveu a obra que as supriria. Afirmar que o livro é sobre as necessidades por suprir do seu autor é o mesmo que afirmar que o livro é mais sobre o seu autor do que sobre outro assunto qualquer. Assim se demonstra, com a perícia possível, que não estamos diante de uma biografia de Fernando Pessoa, como foi feito crer, mas antes de uma autobiografia de José Paulo Cavalcanti Filho.
Seria, portanto, caso de charlatanice, não fosse a segunda das interessantíssimas conclusões desta análise. De tudo merece perdão quem não tem mais do que quase existência. O grande ás de trunfo, portanto, de um César que quase exista e que venda gato por lebre é não poder ser dito dele que é um belíssimo charlatão. Salva-se assim da calúnia pela metafísica, como de outro modo se salvaria pela estupidez dos que o convidam para saraus e lhe dão prémios por charlatanear. Não obstante todas as anteriores distinções, é pela falta de materialidade que, por fim, decisivamente se distingue do César que houve o César que não há. Talvez seja, por isso mesmo, exagerado continuar com a comparação. Permita-se-me maior generosidade: ele é – assim é que vai bem – um exemplar Mr. Pickwick. Não lhe falta nada, aliás, para sê-lo. Minto. Nada lhe faltaria deveras, se escrupulosamente não lhe faltassem os escrúpulos que não faltam a Mr. Pickwick.
Um meio literário, como a expressão propriamente indica, não é local onde abundem senão literatos medianos. Como aquilo que se exige aos outros é amiúde aquilo que cada um exige de si mesmo, um meio literário é, portanto, tão exigente quanto aquilo que exigem de si mesmos os literatos medianos que o compõem. Não se espantará, quem assim for raciocinando, que um Mr. Pickwick possa ser aclamado como César num qualquer meio literário. Caso para espanto é, porém, que se aclame um Mr. Pickwick com as mais notáveis qualidades do arqui-inimigo Alfred Jingle. Significa isto que o meio literário, além de mediano, é estúpido, o que, vistas bem as coisas, é provável que dê no mesmo.
Ora, de que modo, antes de regressar finalmente aos afazeres do clube de cavalheiros a que preside, surpreendeu este Mr. Pickwick do avesso o meio literário que estupidamente o aclamou ao chegar? Com uma dádiva! Com toda a generosidade a que pode alguém que não tem mais do que quase existência, fazendo-se talvez valer de ter a sorte de não ser um quase pelintra, ofereceu 650 exemplares da sua magna obra a escolas portuguesas. Como é sabido, pelo menos desde que, sem o saber, Dejanira envenenou o marido com a prenda que lhe deu, nem todas as oferendas deveriam receber aceitação. É o que se me afigura neste caso. Com as bibliotecas escolares assim apetrechadas, os homens de Portugal de amanhã terão por Shakespeare um César mastodôntico, por Shelley um Mr. Pickwick pernambucano, por Pessoa o Sr. José Paulo Cavalcanti Filho… e serão pouco mais do que quase homens.


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