09/04/2014

Qui Sumus (3)


Julião Maltratado foi, segundo afirma quem dele sabe mais do que uma ou duas coisas, professor de tempos livres. Foi no exercício dessa ocupação, mais ensinando a si do que àqueles a quem ensinava, que começou a desenvolver o apetite por duas das suas diversões favoritas: ser incoerente e não ter vergonha. O despudor, de resto, é vocação com a qual, tudo indica, já terá nascido, o que lhe valeu, logo na altura de frequentar as aulas de filosofia no liceu, a generosa comparação com Diógenes, o Cínico. Embora nunca tenha tido por quarto a cúpula avinagrada de um barril e não se conheça imperador que por ele se tenha deixado impressionar, é justa a comparação – abismado leitor – nem que seja por lhe ser muitíssimo querida a amizade com canídeos. Do folclore a que se presta o seu comportamento público é escusado falar, pois a alcunha não poderia ser, a esse respeito, mais certeira. Por tudo isto, seria compreensível que se conjecturasse acerca da educação que lhe deram os pais, se a deram, e acerca de como em pequeno o importunavam os amiguinhos mais espertalhões. Garante, contudo, quem o conheceu na mocidade que o apelido é mais coincidência do que antonomásia.
Seja como for, é talvez acertado dizer dele o que parece ter dito Platão de Diógenes: que se tratava de um Sócrates louco. Acredite o leitor quando lhe digo que, seja quem for o seu mestre, ou o modelo de que é cópia tentada, Julião é essa pessoa mais a loucura, que é só dele. Como modo de deixar em harmonia a sua existência exterior com a interior – provando-se assim, notavelmente, que até a coerência de ser em tudo incoerente é nele afinal incoerente – não são menos doidas que as maneiras públicas as matérias a que dedica pensamento. As únicas opiniões que possui são as que provêm da absoluta indiferença perante a necessidade de ter opiniões; o seu sistema político preferido é um que não haja; de religião sabe apenas que é profunda e metafisicamente irreligiosa qualquer atitude religiosa.
Aliás, posso mesmo revelar – pois não se absteve o Julião de mo revelar quando lhe perguntei que revelações podia dele aqui dar – que descobriu que não podia haver aquilo a que chamam os deuses numa sexta-feira à tarde, após uma reflexão prolongada que – como deve o leitor facilmente perceber – muito lhe deve ter custado a terminar. Foi no final dessa reflexão, se a memória não o trai, que percebeu que era surpreendente que se precisassem dos deuses para explicar o que quer que haja para lá do que há, mas que não se precisassem de outras coisas – super-deuses, ou lá o que fosse, para lá dos deuses – para explicar o que possa haver para lá do que quer que haja para lá do que há. Percebeu de seguida, porque não podia deixar de percebê-lo, que Santo Anselmo, pelo menos em matérias religiosas, via mal ao longe, e que não é por o seu argumento acerca da existência de Deus se poder aplicar a qualquer coisa que se lhe deve chamar estúpido, como o fizeram alguns dos que lhe refutaram a ideia, mas antes porque é sintoma de uma imaginação pitosga, e portanto de estupidez, achar que há coisa grande o suficiente, Deus ou o que quer que seja, em relação à qual não é possível imaginar nada maior.
Como me contou, logo da segunda vez que me viu, todas as crenças religiosas são, sem excepção, precauções e timidezes. Por um lado, são precauções porque servem a finalidade, como cofre em que se preservem as últimas poupanças, de salvaguardar a hipótese, impossível de provar, de haver outra coisa para além do que há; são timidezes, por outro lado, porque raramente vão além de imaginar que o que há para além do que há é a continuação, em melhores ou em piores condições, do que já há. Vivem melhor – disse por fim – aqueles em quem as precauções ficam perdidas no fundo da algibeira do casaco que não trazem vestido e aqueles que só são tímidos quando estão bêbedos. Assim leva a vida, caríssimo leitor, o Julião Maltratado, não pensando senão no que é seguro que haja, que é pouco mais que nada.
A sua absoluta indiferença em relação a tudo, e o não ter uma única tese, sobre o que quer que seja, que valha a pena a defesa, reflectem-se na rubrica que assina: Sine Qua Non. Nela deixará pequenas notícias, paradoxos, aforismos sobre a vida, dizeres populares pouco conhecidos, breves decifrações, por métodos quase sempre freudianos, daquilo que vê quando tem os olhos fechados, alguns sermões, profecias e outras coisas mais, mantendo-se o mais fiel que souber ao género do epigrama, pois é avesso a maçar os outros com muitas letras e incapaz de manter um raciocínio lúcido por mais do que meia-dúzia de linhas. Leva a rubrica o nome que leva – permita ainda o leitor que o esclareça – não por capricho do Julião mas porque, sem ele, sem a sua imodesta colaboração, o pequeno universo que são estes cinco rapazolas não teria fecho; sem as curtas e irreflectidas contribuições com que vai habituando a baralhar quem o lê, sem as suas maneiras e sem o seu feitio de quem as não tem, não seria possível aos outros serem como são, não lhes faltando o que não fossem. Como contrapeso que se deite no prato para equilibrar a balança, é, pois, pela existência de Julião Maltratado que é grupo o grupo de gente esbaforida que aqui vem de quando a quando largar um pouco de quem são. Dizer outra coisa que não isto seria mentir.
 

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