10/08/2014

In Hoc Tempore - O Trambolhão


Contou-me há dias um primo que não prezo, mas que me escreve todos os anos, tão-só pelo hábito de fazê-lo, a desejar um feliz aniversário e que conte muitos mais – coisas que as pessoas aprendem a dizer pela vizinhança de umas com as outras – que sofrera naquela semana, por uma coisa que lhe acontecera num transporte público, um abalo muito grande. O episódio, a que deu andrajos de desgraça, causou em mim, no entanto, um abalo de tipo bastante diferente. Se lhe respondesse à carta em que mo contou, coisa que não farei por estimar mais os meus papéis do que a tagarelice com os outros, dir-lhe-ia que a história que me relatou não suscitou em mim o terror e a piedade a que o seu espírito foi levado, ao assistir ao que se passou, mas a gargalhada mais despudorada a que pode alguém dar garganta. Como é possível – perguntará o leitor perplexo – que um mesmo acontecimento produza tão dissemelhantes reacções? Como é possível que uma pessoa calce os coturnos a uma história que, segundo a opinião de outra pessoa, só tem pés para calçar socos?
O que aconteceu – e uso apenas palavras minhas para informar o leitor daquilo que me contou o meu primo – pode ser descrito, eximindo-se aquele que fala do decoro com o qual o convenceram que devia falar, quando se trata de assuntos delicados, por um vocábulo que, desde logo, mais puxa a risada do que comove e acarida: um trambolhão! Quem caiu – e aqui a gargalhada, já a levedar desde que se falara no trambolhão, abeira-se das portas da goela, pedindo para sair – foi uma velha. Diga lá o leitor parcimonioso se, contada assim, a história não o diverte! Um bom contador de histórias, caso não saiba, é como um pai habilidoso que, em poucos segundos, transforma a choradeira de uma criança que tropeçou, caiu e magoou o joelho num prazer silencioso dando-lhe para a mão uma guloseima com que se lambuze. Quando o meu primo, na sua carta escusada, me contou esta história, contou-a evidentemente noutros termos, dando expressão à aflição que sentiu. Mas eu li-a como se a estivesse a contar, e que é pouco mais ou menos como a estou a contar agora. E assim, pela habilidade da guloseima, o que no contador de histórias é o talento para contá-las ou a faculdade a que os românticos chamavam imaginação, a aflição dele transformou-se instantaneamente em divertimento.
Quando posto deste modo, só não acha engraçado um trambolhão de uma velha quem trava a saída esbaforida da gargalhada com as trancas da boa educação, impedindo assim a convulsão orgânica do riso pelo artifício de pensar na acção de rir. Quem o faz, acha, por isso, que há mais dignidade em ser sério do que em ser honesto. Faça-se o exame singular de pôr velhas a dar trambolhões diante de todo o tipo de gente: das bocas das crianças, dos tolos e dos desavergonhados, por não saberem ainda que, socialmente, é mais importante não rir do que não mentir, por não terem como sabê-lo ou por lhes faltar o pejo com que pudessem pôr em prática o que sabem, as gargalhadas sairão com naturalidade. Trambolhões de velhas são como cócegas em quem as tem: provocam necessariamente o riso. Claro está que uma pessoa pode precaver-se facilmente dessa necessidade andando sempre de peúgas nos pés. Tal batotice, porém, não a torna imune ao riso; se alguém mais forte a agarrar, lhe tirar as precauções dos pés e neles passar uma pluma, desde o calcanhar até aos dedos contraídos, essa pessoa torcer-se-á de tanto rir. De igual maneira, tirem os bons modos e os escrúpulos a quem os tem calçados e ninguém haverá que, ao ver um trambolhão de velha, seja capaz de reter dentro de si a irreprimível gargalhada que ele exige.
Pensará o leitor, abanando a cabeça com razão, que, com certeza, podemos rir muito de velhas a cair, desde que não as conheçamos nem saibamos de que males depois enfermaram, e que, portanto, a tese a que tenho estado a dar explicação, não é tão contra-intuitiva assim. Mas – pelo cão! – acha que já lhe disse tudo o que o meu primo me contou? Até agora, a única coisa que divulguei foi que uma velha deu um trambolhão. Depois disso, levantaram-se dos seus lugares todos aqueles que, como o meu primo, se afligiram com o estrondo da queda e mais ainda com os gritos de aflição da velha, e acercaram-se dela para ajudá-la a levantar-se todos aqueles que, ao contrário do meu primo, não se voltaram a sentar para não perderem os lugares. Estará decerto escrito – caro leitor – em algum versículo pouco lido de algum manual de moralidades pouco célebre, que não devemos rir da desgraça alheia, que é desumano não nos compadecermos de quem se aleija a sério, que é obrigatório ajudar quem precisa de ajuda, desde que isso não prejudique o conforto do rabo no autocarro. Enfim, o meu primo não foi dos que foram tentar guindar a velha – aliás, muito gorda, o que é sempre uma característica engraçada, mais uma, em velhas que caem – mas ficou a assistir a tudo, condoído.
Quando o chauffeur se apercebeu, pelo pânico das pessoas, mas sobretudo pelos gritos de “ai que morro aqui!” com que a velha ia assustando os restantes passageiros, que a travagem brusca a que fora forçado ainda há poucos instantes produzira aquele efeito inesperado, encostou à berma e parou. Alguns minutos depois, haveria de chegar uma ambulância; um pouco mais tarde, o primeiro diagnóstico, pouco convicto, iniciado pelo socorrista que imobilizou a velha e passado de boca em boca por toda a gente, de que talvez fosse uma anca fracturada, o que, com aquela idade e aquele peso, valha-nos Deus!, era dano para o resto da vida, era ficar, desgraçadinha!, para sempre numa cadeira de rodas, ou pior, deitada numa cama… O meu primo contou tudo isto com emoção; eu, como já disse, ri muito. Ri – leitor mal-encarado – porque um trambolhão de uma velha é, por si só, muito divertido, como expliquei, mas também porque não resisto – e não devia resistir quem quer que tenha pelo intelecto, que é o que faz dos homens as criaturas que são, o justo apreço – a rir da desventura de quem é estúpido. É que, como também me contou o meu primo, a velha fora todo o caminho, até ao momento da travagem, de pé, segurando-se apenas com uma mão, já que a outra estava ocupada a segurar o telefone, para o qual berrava, a incomodar tudo e todos com os mexericos da irmã e do cunhado, e recusara várias vezes, por estar quase a chegar a paragem em que saía, a oferta do assento, no qual recomendavam que acomodasse as carnes para não cair.
Os espartanos, lembra Carlyle pela voz do professor Teufelsdröckh no Sartor Resartus, davam caça aos helotes, a classe de servos em Esparta, sempre que os seus números engordavam. Não como modo de regular o aumento populacional e evitar revoltas mas para acabar com a pobreza, sugere o mesmo professor que seria utilíssimo à higiene da sociedade que se perdessem três dias por ano a abater os pobres que se tivessem acumulado ao longo desse ano. A operação de limpeza, de resto, não acarretaria custos públicos, devendo as carcaças dela resultantes ser salgadas, enlatadas e dadas a comer a quem tivesse fome. Ora, só muito raramente um servo ou um pobre o são por responsabilidade própria; quem é estúpido, porém, deve ser responsabilizado pela sua estupidez. Se me parece injusto, por isso, que servos e pobres mereçam o extermínio, e é exagerada e desumana quer a política preventiva dos espartanos, quer a medida, não obstante a ironia dela, do professor Teufelsdröckh, uma sociedade que tivesse o bom costume de exterminar a estupidez seria uma sociedade melhor. Enquanto não chega o dia em que um estúpido, andando pela rua desprecavido, for apanhado e levado à força para um açougue onde lhe dêem sentença e o fatiem para fazer fiambres, gelatinas e todo o género de polpas enlatadas com que se alimente caridosamente quem não pode comer melhor, é pois dever de quem quer que respeite mais o que é justo do que o que é comovente rir-se muito de qualquer que seja a infelicidade que se abata sobre quem é estúpido. Eis-me, ora pela estética da queda, ora pela ética da justiça dela, absolvido de ter rido.
 

Sem comentários: