07/10/2014

In Hoc Tempore - Banhos Públicos e Marionetas Molhadas


Troveja lá fora. Que acuda Santa Bárbara a quem tiver de acudir. Por mim, ouço bater o granizo nos parapeitos e comovo-me. As bátegas na rua e o rachar de lenha com que os céus se fendem são canções que embalam quem não formou os medos pelas companhias. Fique o caríssimo leitor a saber que há pouca coisa de que goste mais do que de uma tempestade medonha. As pessoas temem os deuses, ou os barulhos que atribuem aos deuses, só porque cresceram a ver pessoas mais velhas a temer deuses e barulhos. Se tivessem crescido sem ervas daninhas à volta, dentro de um poço, por exemplo, ou se tivessem crescido a desaprender o que iam aprendendo, que é como cresce quem sabe crescer, tinham tanto medo de trovões como de uma borboleta que lhes pousasse num dedo.
Entre os homens, a vizinhança é lei: se dois ou três decidem que quadrados são círculos, logo milhares de amigos sorridentes vêm repetir a nova matemática que os anima; se dois ou três decidem que tomar banho é coisa que se deve fazer em público, logo a Humanidade assume que é divertido entornar um balde em cima de cada ser humano que tenha com que gravar a diversão. Repudio acima de qualquer outra coisa, leitor pouco atento, a estupidez particular que há em não ser senão o que os outros são. A ideia de que é giro fazer exactamente o mesmo que os outros fazem, seja isso crer nos deuses em que todos crêem, andar convencido de que as pessoas se devem agrupar aos pares ou despejar água gelada pelo corpo como passatempo, só é menos estúpida do que a ideia de que é giro mostrar aos outros que se faz exactamente o mesmo que eles. Deste ponto de vista, ter as mesmas crenças que todos têm é um sinal inequívoco de estupidez; mastigar a hóstia, casar ou tomar um banho público, porém, é comportamento de gente cuja vida é não só o que os outros determinam que seja como é vida que precisa da bênção dos outros para ser alguma coisa. Se os primeiros são só estúpidos, e dá pena saber que existem, os segundos não existem propriamente.
Entre os primeiros, incluem-se todos aqueles que nunca tiveram uma ideia original. Por exemplo, o padeiro que faz o pão como lhe ensinaram a fazer e que chega a casa enfarinhado, janta cedo, vai para a cama sem perceber que passou mais um dia e acorda de madrugada para voltar às massas enroladas. Este padeiro não é aqui referido, caro leitor, a título particular, mas enquanto representante da classe daqueles cuja triste existência alguns poetas comovidos choraram, lamentando que a vida não lhes tivesse permitido mais do que serem o ninguém que são. Como pérolas para sempre no fundo dos oceanos ou flores que ninguém vê desabrochar e que desperdiçam as suas cores em campos despovoados, este padeiro vive pelo único motivo de ainda não ter descido sobre ele a cortina que lhe virá encerrar o pobre espectáculo que trouxe à cena. Como os poetas a que me reportei, devo dizer que sinto por ele alguma compaixão. É um pobre coitado que nunca aprendeu a ser outra coisa que não o pobre coitado que é, e que faz pelos ossos o melhor que sabe sem atender à evidência de que o que faz nada interessa. Vive porque viver é coisa na qual lhe disseram que devia pôr o empenho. Se tivesse algum dia um só vislumbre de si a fazer carcaças para levar ao forno, vendo quem é por fora, como se fosse outro a vê-lo, e tivesse a coragem de extrair dessa visão aterradora a conclusão certa, teria por reacção natural de exclamar para que todos na plateia ouvissem: “Acabou-se o espectáculo! Não há mais pão! O artista vai dormir!” E resolvia ele próprio, sendo por uma vez alguém, o problema.
Se este padeiro, por não poder ser senão o que é, de certo modo motiva os sentimentos comiserados, outros há que, ao dirigirem o esforço de ser alguém para aquilo que todos são, desperdiçam a vida como ele, mas rindo do desperdício. O padeiro pode ser estúpido e não ser, de facto, ninguém; muito pior do que isso, contudo, é ser alguém que é outro. Não há miséria maior, leitor que lê sem que perceba, que orientar a vida como a ovelha que, seguindo a ovelha que vai adiante, pelo rebanho desorientado orienta a sua. Uma ovelha tresmalhada dá pena, porque sem o rebanho dificilmente encontra o caminho para o redil. Numa ovelha que não se perde, no entanto, ninguém repara. Ainda que regresse ao redil a salvo e continue a possibilitar a ordenha na manhã seguinte, a existência dela é colectiva. Vive na medida em que faz parte de um rebanho e na medida em que não se diferencia de cada ovelha que lhe compõe os números. O homem de negócios bem sucedido, que estudou muito e se destacou na escola quando era novo, que casou com uma rapariga de boas famílias, a quem deu três filhos, que se lava de manhã para ir para o emprego e chega à noite a casa ainda com a camisa por dentro das calças, dando as boas-noites e perguntando pelo jantar, que ao domingo vai à missa e que, uma vez no leito de morte, rodeado de netos sadios, de amigos e do padre à espera de ungi-lo pela última vez, recorda com satisfação a boa vida que teve, só é diferente do padeiro por não ter ficado limitado, pelas circunstâncias da vida, às farinhas e aos fermentos.
O padeiro não é ninguém porque a vida não lhe permitiu ser senão padeiro; o homem de negócios não é ninguém porque não soube sê-lo. O que é que interessa, leitor empertigado, que vá para a cova convencido de que fez as escolhas certas? Desperdiçou a vida como o primeiro, embora por meios diferentes. Foi mais feliz? Teve saúde e amigos? E o que fez com isso? Acaso incendiou um templo em Éfeso, garantindo assim que dele se falasse para sempre? Não. Nasceu, adolesceu, apaixonou-se, casou, teve filhos, envelheceu, ficou doente e foi velado. Quando quiserem falar dele no futuro, só terão a vida genérica que todos têm para mencionar. Será referido nos livros de História condescendentemente, quando o historiador empregar a palavra “Humanidade”, e não terá, por isso, outra posteridade que não a de ser lembrado pelo rebanho a que pertenceu. O padeiro que não pode ser outra coisa pode, pelo menos, ter a sorte de ser lamentado individualmente por um poeta compadecido. Não é consolação que lhe valha, mas é qualquer coisa. Os homens iguais aos homens, porém, nem sequer motivam poesia. Além de não serem ninguém em vida, não serão ninguém depois de mortos.
Todos aqueles que, pelo desporto de se fazerem notar, têm recentemente derramado água fria sobre si próprios e feito disso filme com que recordar a bravura de fazê-lo são em certa medida homens de negócios como o homem de negócios da conversa. Podem distinguir-se dele por várias razões, mas são como ele por negociarem alguma coisa. Todos aqueles que tomam agora publicamente o seu banho obedecem, ainda que não o saibam, a uma vontade colectiva que lhes é alheia. Podem não crer na predeterminação de tudo, não fazer caso das imposições do Fado e achar que são livres, que tudo aquilo que fazem é o que lhes apetece fazer; na verdade, são marionetas. Não o são, porém, por serem criaturas a quem criaturas mais poderosas, subindo e descendo os dedos, determinam o passo. Por absurdo que pareça, quem puxa os cordelinhos por que se mexem não é um marionetista maior do que eles, uma entidade divina, ou simplesmente a inteligência própria, que acima deles lhes estipula a acção, mas as outras marionetas que, também sem dedos de marionetista a governá-las e com os fios enredados nos fios das marionetas vizinhas, ao lado deles se agitam sem sentido.
Aquilo a que hoje se chama sociedade é um espectáculo de marionetas no fundo do armário. Como sabe quem já tentou desenredar marionetas que se guardaram sem cuidado, o fio que se puxa para libertar o braço de uma delas levanta a perna de três outras, e o que cada uma delas faz é, portanto, força a que nenhuma das outras pode resistir. Eis a que chegou a raça que os homens têm por sua! Encharcam-se porque a marioneta que são tem os cordéis presos à marioneta do lado. Sem perceberem que, quanto mais banham as carnes, mais molham o novelo a que pertencem pela preguiça de não terem sido arrumadas como deviam, eis que tornam mais difícil a libertação. A moda dos banhos públicos é o nó górdio com que as marionetas molhadas que são se atam definitivamente a quem está próximo, e mostrar que é divertido andar atado é um espectáculo a que só acha graça quem, como os infelizes da caverna de Platão, nunca experimentou a vida desatada dos que dão folga às cordas a que estão presos.
 

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