31/10/2014

Sed Contra - O Regresso das Humanidades


Parece que as Humanidades vão regressar. Quem o diz é a organização do colóquio a acontecer nos dias 30 e 31 de Outubro (ontem e hoje) na Faculdade de Letras. De onde regressam as Humanidades, por que meios o fazem e por que motivos se ausentaram é aquilo que – imagino – tal encontro visa esclarecer. Que as Humanidades não sejam pessoas e, como tal, não sejam capazes de emigrar para fazer pela vida, regressando mais tarde para gozar a velhice, parece tão evidente quanto irrelevante para o caso: se não têm pernas nem vontade para voltar das Franças, alguém as trará às costas, com certeza. Daí que averiguar os motivos por que regressam se faça pela averiguação dos motivos por que as trazem às costas quem assim as faz regressar. As Humanidades regressam pois do estrangeiro, às costas do desterrado que regressa a casa depois de muitos anos de desterro, como farnel em vara com que dar peso ao papo pelo caminho, e apenas porque aquele que as traz não podia regressar sem as trazer, sob pena de não ter como alimentar a barriga e a boa intenção de voltar à pátria.
Falar do regresso das Humanidades é, portanto, falar dos humanistas que regressam a mastigar-lhes as carnes e que, sem pano a que possam limpar as mãos depois da refeição, chupam os dedos lambuzados. O colóquio que anunciam não é, por isso, senão repasto; juntar-se-ão numa sala não para falar do regresso das Humanidades, mas para comê-las. Uma vez que estarão presentes no banquete alguns dos ilustres que se reuniram há alguns meses para discutir a urgência que há na literatura, e uma vez que a gente que discute tais assuntos, como comprovado pelo raciocínio exemplar que tive a oportunidade de garatujar na altura, é gente que, como crianças a brincar aos médicos ou tarados a apalpar corpos alheios, tem por regime predilecto um em que é mais digno de honrarias quem lê muito do que quem lê pouco, é admissível que não saia de lá o correligionário que lá for sem entender que quem afinal regressa é El-Rei D. Sebastião.
Pessoas que se reúnem à volta de mesas, com a louça régia e os talheres de prata à frente, para discutir a urgência ou o regresso das letras, são pessoas a quem interessa menos as letras, que aliás não servem senão para dar sossego à fome, do que a possibilidade de encaminhar para o cadafalso quem não tem por elas o mesmo apetite. Com o regresso de El-Rei D. Sebastião, regressa a possibilidade de exercerem a vocação de verdugo cuja extinção têm lamuriado desde que se decretou, para pasmo geral de toda esta fidalguia desterrada, que nobre e ignóbil não são qualidades que se determinem por comparações sanguíneas. Assim se compreende o entusiasmo com o evento. Saudosos da vida da corte, do arminho aos ombros dos monarcas a quem deviam o beijo nos anéis, do convívio com os príncipes e as princesas e da boa opinião sobre eles a que os obrigava o preço a que amizade lhes era vendida, dos bailes grandiosos e dos salões de dança, das tapeçarias persas e das mais distintas iguarias, mas incapazes de aceder ao interior movimentado dos palácios em que tudo isto acontece, travados às portas pela guarda-real da pulsão igualitária hodierna, resta-lhes assumir o papel do bobo que, de maneira a poder privar com famílias reais, não se importa de ganhar a vida a proferir disparates, a contar chalaças e a fazer piruetas no ar. As Humanidades a que este encontro se reporta são, pois, o alvará de bobo com que acautela a vizinhança aristocrática quem celebra o regresso delas, e quem quer que mereça a pouca sorte de lá ir ver passar licenças para ser parvo com certeza sairá de lá mais histrião do que entrou.

2 comentários:

Anónimo disse...

Raciocínios lógicos correctos não são o mesmo que pensamento, maledicência não significa sentido crítico e estilo pomposo não deve ser confundido com literatura. Quando o autor perceber estas diferenças pode ser que comece a escrever alguma coisa de jeito. E isto serve para outros textos e autores neste blogue.

Álvaro da Horta disse...

A receita para começar a escrever coisas de jeito passa então por deixar de fazer raciocínios, melhorar a educação e abandonar o estilo. Para escrever coisas de jeito, portanto, é preciso ser tolinho, concordar com os disparates de toda a gente e escrever como quem fala. Muito obrigado pelas recomendações, mas já tinha percebido em que consiste um escritor contemporâneo e nunca tive vontade de ser assim.