25/02/2015

Os Carlinhos Aleijadinhos



Depois do choque dos atentados terroristas contra as satirazinhas do jornal francês, de cuja condenação poucos se excluíram, o mundo começou, pouco a pouco, a regressar à normalidade. Sem grande espanto, boa parte dos Carlinhos que, a quente, repudiaram sem rodeios o acontecimento, passaram a justificar a infâmia através da insensatez ou das injúrias a que os desenhadores amiúde se entregavam. Mesmo que não tenham desculpado os assassinos, desculparam-lhes certamente a irritação. Na cabeça de quem pensa assim - caríssimo leitor – a acção de espingardar contra os outros é inaceitável, mas o estado de espírito que antecipa e leva a pegar em espingardas é compreensível e justo. A fronteira entre o perdoável e o imperdoável, para a maioria dos homenzinhos e das mulherzinhas que sobre isto tiveram a oportunidade de dizer alguma coisa, está naquilo que distingue o fazer do pensar fazê-lo; o que não admite perdão, portanto, não são os crimes propriamente ditos, mas a incapacidade de açaimar o ódio despertado pelas provocações alheias.
Pouco interessa, para os fins a que este texto se atira, que a imprecisão me leve a falar em espingardas e não nas armas com que realmente as coisas aconteceram. Aqueles que pensam como acima descrito, aliás, preocupam-se menos com disparos do que com desaforos. Não é, pois, sobre andar aos tiros aos outros que importa pôr a análise, mas sobre a indignação que é devida a cada um quando um conhecido ou um estranho diz mal daquilo que nos é querido. Como adivinhará o leitor em quem a perspicácia se encontre adubada, este texto não é sobre fundamentalismo religioso, nem sobre terrorismo, nem sobre liberdade de expressão, nem sobre valores culturais manifestamente incompatíveis. Não é sequer sobre aquilo que se passou em Paris nem sobre o que acerca disso muito particularmente se disse. É, sim, sobre uma certa maneira de pensar, uma maneira de pensar muito generalizada que, quando usada para fins de exame moral, escrupulosamente aproxima quem a ela se entrega daqueles que andam aos tiros em nome de maomés pintados.
Decorre da convicção de que desenhos, opiniões ou mesmo ofensas em geral sejam coisas que podem irritar os outros e que, por isso, merecem repúdio, uma antropologia de aleijadinhos de que poucos se dão conta. Ficar ofendido não é como pisar uma mina e ficar sem uma perna: normalmente, passa após algum tempo, mais nuns casos e menos noutros, consoante a própria ofensa e, sobretudo, o orgulho e a susceptibilidade de cada um. Quando alguém ou alguma coisa nos ofende, não perdemos nada, portanto, que não possamos recuperar. Mas ficar ofendido também não é como ser mordido por uma melga a que se dá caça de seguida para nos vingarmos da mordidela e para que não volte a morder-nos. Uma ofensa não morde como uma melga, e dela não se segue uma irritação cutânea a pedir a reacção de coçá-la. Ser alvo de uma ofensa não é sequer idêntico a apanhar uma chuvada. Quando os céus humilham os desprevenidos, fazendo chover onde eles estão e quando eles menos esperam, provocam neles o desconforto húmido de os deixar menos secos do que pretendiam, coisa de que nenhuma ofensa, por mais ofensiva que seja, tem o poder. Minas que estropiam, melgas que mordem e chuva que molha são coisas que, definitiva ou provisoriamente, modificam fisicamente quem somos. Só pondo a convicção numa antropologia de índole espiritual – leitor compreensivo – uma antropologia que considere que o homem se distingue dos outros bichos por ter extremidades nervosas naquilo a que vulgarmente se chama espírito, se pode achar que ofensas sejam coisas que causam efeitos em pessoas; só aceitando, portanto, que todo o homem se aleija quando o injuriam, pode alguém sustentar a relação causal entre um desaforo e uma bofetada em quem o profere. 
Tirando os psicólogos e os que levam as psicologias a sério, pessoas que tendem a acreditar nessa relação causal para manter o emprego ou para justificar a cobardia, só subscreve este género de antropologia ou quem educou as ideias na companhia destes dois tipos de pessoas ou quem as educou na companhia de padres, amigos místicos ou bêbedos, isto é, na companhia de gente para a qual a dignidade das pessoas se encontra à superfície da pele e é tão frágil quanto uma peça de cristal. Para estes três tipos de pessoas – psicólogos, cobardes e estúpidos – o homem é, psíquica ou espiritualmente, como se preferir, uma criatura tão indefesa e tão aleijadinha que qualquer brisa primaveril, ao soprar levemente, lhe ataca o reumatismo que desenvolveu no orgulho. A Humanidade, vista pelos olhos de quem assim pensa, é um conjunto de leprosos da alma, de Lázaros choninhas que é preciso proteger pelos remédios santos da psicologia, da cobardia ou da estupidez. Como certamente diria o meu mestre, um daqueles raros mestres de gente com capacidade para ter mestres, já era altura – leitor subitamente interessado – de as pessoas deixarem de se preocupar com as garotices a que os outros se prestam.
Ficar ofendido pelo que os outros dizem ou fazem não é diferente de ficar ofendido com um grilo que canta no silêncio da noite, com o vento que sopra lá fora ou com os primeiros raios de sol que, começando a espreitar pelo parapeito do horizonte, dão em dissipar as trevas e em dificultar o sono a quem dorme. Nem mesmo àqueles que punham a crença em hamadríades e afins, para quem estes incómodos eram antigos deuses caídos a expiar pelo canto o castigo das suas metamorfoses, Zéfiros arreliados e Hélios ou Apolos puxando por dever a carruagem dourada que lhes pertence, passaria pela cabeça ficarem ofendidos por algo que, por mais que os aborrecesse, não lhes dizia respeito. Tal como criquis de grilos, ventos e raios luminosos são coisas que, não obstante as faculdades auditivas, tácteis e visuais com que os percepcionamos, dizem respeito aos grilos, aos ventos e ao sol, qualquer desaforo que nos dirijam, não obstante a faculdade intelectual com que entendemos que nos é dirigido, diz respeito apenas a quem o profere. Do facto de termos audição, tacto, vista e entendimento com que ouvir, sentir, ver ou entender o que quer que seja não se segue senão que ouvimos, sentimos, vemos e entendemos o que se passa à nossa volta. Começamos a enfermar no momento em que nos apropriarmos do que quer que ouçamos, sintamos, vejamos e entendamos: esta enfermidade, seja ela qual for, é certamente uma forma de paranóia.
Todos aqueles que consideram que a vontade de andar aos tiros é compreensível em quem é alvo de insultos, e que o erro dos que andam de facto aos tiros, não aferrolhando essa vontade dentro de quem são, é andar aos tiros e não o terem vontade disso, sofrem da paranóia particular de achar que o mundo que os rodeia lhes pertence. Tal estado clínico, como antecipei acima, faz de quem assim crê um aleijadinho muito parecido com a espécie de aleijadinhos que não tem pejo de andar aos tiros. Pese embora o pejo, ou a falta dele, que os distingue, é gente de laia parecida; fora o travão moral, a timidez ou o que mais haja com que escapam a tornar-se a pessoa que dentro deles já são, há em ambos a mesma enfermidade de julgar que o mundo que lhes é externo é propriedade interna de quem são e que todos os acontecimentos que nele se dão, desde um zumbido de mosca à mais remota glória do universo, são toupeiras a escavar no quintal que lhes pertence e às quais é justo dar em cheio com uma pá.
As pessoas são aquilo que pensam, não aquilo que fazem. Como explicou o preceptor do mais distinto de entre os macedónios, não é a acção corajosa que faz o corajoso, mas a coragem que há em potência no seu carácter e que se actualiza na acção. Se assim não fosse, não haveria maneira de distinguir quem é corajoso a sério de quem o é por acidente, nem haveria diferença entre aquele que arrisca a pele para salvar o rebanho de um redil em chamas a pensar no prejuízo que terá se não o fizer e aquele que o faz por amor à bicharada. As pessoas não são os cachecóis a que dão forma em noites de inverno, mas os novelos a partir dos quais os tricotam exteriormente. Os cachecóis dos ofendidos que pegam em armas para vingar a ofensa podem ser muito diferentes dos cachecóis com que protegem o pescoço tímido aqueles que não permitem que a ofensa lhes tome as rédeas de quem são, mas é do mesmo emaranhado de fios escarlates que saem diferentemente tricotados. Padecem estes dois tipos de pessoa da mesma enfermidade, e só pela contingência de não a medicarem de modo igual ela se manifesta de forma distinta. A mesma quantidade de intolerância que leva os primeiros a fazer aquilo que envergonha quem quer que fale abunda nos segundos, ainda que a vergonha que não falta a estes os trave de serem o que, faltando-lhes, sem dúvida seriam.
Quando se sugere a expatriação dos que, pelos fundamentalismos lá deles, não percebem que é ocidentalmente inaceitável cometer as atrocidades que em privado é justo que idealizem, comete-se o erro, aliás muito vulgar, de achar que as pátrias, sobretudo as ocidentais, são lugares mais saudáveis quando habitadas por gente que tenha os impetozinhos domesticados. É preciso dizer – leitor indignado – que não o são. Admitindo que um lugar é mais saudável quando mais tolerante e mais enfermiço quando menos, não é expatriando os intolerantes que manifestam exteriormente a sua intolerância e condescendendo com os intolerantes que a refreiam dentro de si, isto é, expatriando uns enfermos e deixando outros, que se melhora a higiene duma pátria. O século que passou, de resto, demonstra irrefutavelmente que uma pátria não é mais higiénica por ter menos gente doida e mais vontades contidas. Haja a coragem de afirmar que só expatriando todos os que se ofendem e acham normal que uma pessoa se ofenda com vapores é possível livrar uma pátria dos aleijadinhos que a povoam. Expatriar por expatriar, expatrie-se antes quem é enfermo!
 

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