17/08/2015

Sed Contra - A Criança Tolinha (3)


Tendo ficado demonstrado, nos dois textos de que este é conclusão, que Herberto Helder está para a poesia como um marinheiro a quem não explicaram o que é marinhar está para a marinhagem e como um adolescente a quem não explicaram o que é adolescer está para a adolescência, falta agora tornar claro de que modo esta criança tolinha, não obstante nunca ter aprendido a marinhar nem ter realmente adolescido, deu em ser marinheiro e adulto respeitado. Por outras palavras, falta explicar por que motivos não é crueldade nem deselegância achar, como o achará quem souber o que é justo achar, que nem o facto de Herberto Helder ter nascido na Madeira lhe desculpa a dicção entaramelada. É hora, por isso, de olhar com atenção, de preferência sem o coração amargurado nem a alma condoída com que olham todos os que se emocionam ao olhar, para o poema central do seu primeiro volume de poemas e, possivelmente, da sua obra completa.
Ainda que tenha ficado dito, na primeira parte desta análise compósita, que o livro A Colher na Boca é assaz auto-explicativo, não ficou nessa altura dito que a inspiração de criança tolinha que tão sinteticamente se explica por esse título é metaforizada, na quarta secção de “Elegia Múltipla”, numa colher que “de súbito cai no silêncio da língua”. É certo que, na quinta secção de “O Poema”, a associação entre inspiração, crianças e colheres já tinha sido experimentada e que, para perceber por que motivo Herberto Helder afirmava, quase de seguida, que “abaixava-me e tomava como nos braços / essa criança ignota” e que “tudo me inspirava / nessa noite abrupta”, bastava talvez perceber que “a colher / pode ligar a terra à violência do espírito”. Que a colher seja aquilo que liga o mundo exterior ao mundo interior, aquilo que transforma uma criança em que se pega ao colo numa criança inspirada dentro do espírito do poeta, é algo que, no entanto, só se percebe devidamente na quarta secção de “Elegia Múltipla”, pois é aí que, sem distracções de outro género, se compreende que a colher se encontra “envolvida pelo silêncio extenuante / da minha boca, da minha vida”.
Ao contrário de qualquer criança que, por não ser tolinha, leva à colher à boca, mastiga, engole o alimento, e logo trata da colherada seguinte com que dar continuidade à aborrecida missão de encher a barriga antes de poder regressar ao recreio, Herberto Helder leva à colher à boca, deixa-a lá e põe-se a meditar sobre a trivialidade de ter uma colher na boca. “Que faço?”, pergunta ele assim que fecha a boca, prendendo a colher. A resposta é relativamente simples, e qualquer pai com pouca paciência lhe teria dito que comesse o que a colher levava ou, percebendo a birra, lhe teria dado uma chapada para que se despachasse a jantar. Sem pais que o ensinassem a ter maneiras à mesa, Herberto Helder deixa ficar a colher na boca enquanto assegura que sabe “como se alimenta um homem”. Qualquer pessoa sensata sabe, porém, que é possível que o poeta não saiba o que diz que sabe: quem sabe alimentar-se, não se deita a filosofar sobre modos de alimentar-se nem diz que o sabe; alimenta-se e pronto. Claro está que Herberto Helder não é uma pessoa qualquer. Como criança tolinha que é, não é da sopa que a colher leva que fala, mas daquele outro alimento com que esse homem, que é “tímido e arguto” por razões que não se percebem, “alimenta a sua irónica inspiração solar”. A cena doméstica esconde, então, um ritual qualquer. Leia-se toda a estrofe:

Que faço? Bem sei como se alimenta um homem,
E tímido e arguto
Alimenta a sua irónica inspiração solar,
A inocente astronomia
De ossos e estrelas, veias e flores
E órgãos genitais –
Para que tudo se construa docemente,
Com as mulheres sentadas nos seus vestidos coalhados,
Sorrindo fixamente como as crianças na lírica,
Tenebrosa densidade da carne.

O que se segue à revelação do terceiro verso da estrofe é, pois, o conteúdo dessa inspiração de que afinal se alimenta a criança tolinha. Não comendo a sopa como devia, Herberto Helder começa a delirar. O delírio leva-o a ver coisas exteriores misturadas com coisas interiores, estrelas e flores misturadas com ossos e veias. A essa estranha astronomia botânica e anatómica, cuja inocência também não se percebe de onde venha, junta ainda, sem pudor, “órgãos genitais”. Como lembrei acima, muita falta terá feito a Herberto Helder um pai que não lhe admitisse as indecências à mesa. E o que dizer dos últimos quatro versos? O que é que se constrói docemente? O poema assim inspirado por essa astronomia que afinal trata de botânica e também mete anatomia? Mas, que raio! É possível construir alguma coisa confundindo três ciências? E por que motivo há “mulheres sentadas”? E o que são “vestidos coalhados”? Quais “crianças na lírica”? De onde é que tudo isto vem? O que é tenebroso não é a “densidade da carne”; é a quantidade de disparates que assim se acumulam por não se ter comido a sopa. Assim se demonstra o que desde o primeiro texto tem vindo a ficar evidente: a poesia de Herberto Helder procede de uma inspiração de doido; os seus versos são escritos ao calhas; falta lastro às suas metáforas. A subnutrição que resulta de manter a colher na boca em vez de a usar para comer deixou-o aparvalhado. Mais uma vez, uma chapada bem dada teria sido muito útil.
Não tendo levado a chapada merecida, Herberto Helder manteve a colher na boca e foi-se tornando “um homem que instante a instante / ganhava um sabor de perene / sentido, uma duração de sombra extasiada”. De tanto aí a manter perene e extasiadamente, sem engolir o que ela levava, deve o poeta ter começado a sentir o gosto plúmbeo da própria colher. Eis o veneno que, adicionado à subnutrição, o leva a prolongar o delírio de considerar, como o considera logo de seguida, que a colher “subia como um instrumento de criação”, e que, assim subindo, se transformava em “música, / intimidade, sinal fortuito / de uma essência, um génio interior”. Há crianças que, convencidas por pais cruéis de que as fadas existem, deixam um dente que lhes caiu debaixo do travesseiro durante a noite, esperando que, ao acordar, a fada dos dentes o tenha vindo trocar por uma prenda qualquer. Como já foi referido, Herberto Helder não é uma criança normal. Em vez de acreditar em fadas, acredita em génios interiores; em vez de deixar dentes de leite debaixo de almofadas, deixa colheres na boca; em vez de achar que dentes se transformam em prendas, acha que colheres se transformam em música. Mais uma vez se demonstra que toma por inspiração o que não é. Uma criança normal aprende, mais tarde ou mais cedo, que não há fadas, que deixar dentes debaixo da almofada é coisa de criança e que as prendas que costumava descobrir de manhã, ao acordar, tinham sido lá postas por pais que, sem imaginação, copiam a tradição de enganar os filhos enquanto podem. Uma criança tolinha, por sua vez, não aprende nada disto. Tal como não consegue aprender a distinguir a puberdade da poesia, ao adolescer, também não aprende, já adulta, a deixar de acreditar nas coisas em que a fizeram acreditar quando era criança. Se Herberto Helder fosse outra coisa que não a criança tolinha que tenho insistido que é, saberia com certeza que é tão provável que uma pessoa consiga estabelecer intimidade com génios interiores como com fadas, que deixar colheres na boca à espera de qualquer coisa é só ter pouca fome e que colheres na boca só se transformam em música se alguém, como é possível que fizesse o pai irresponsável do poeta sempre que ele assim se demorava a comer, ligar o gira-discos para não dar a bofetada que devia ao filho pastelão.
Não é só quando está à mesa, contudo, que Herberto Helder é inspirado. A segunda secção de “As Musas Cegas”, ainda em A Colher na Boca, termina com alguém a apagar as luzes, possivelmente para que o poeta parasse com as tolices e fosse dormir. Em vez disso, Herberto Helder diz que, quando as luzes se apagam, “é o tempo sôfrego que principia”. Embora a sofreguidão pudesse ser explicada pelo que quer que se passasse debaixo dos lençóis do poeta, parece reportar-se antes à cantoria a que se dedica quando lhe apagam as luzes e lhe dão as boas-noites. Como o confessa, a justificar o que a escuridão exige de si, “é preciso cantar como se alguém / soubesse como cantar”. Herberto Helder desata a cantar quando sente certas vontades carnais, tal como explicado no segundo texto, desata a cantar quando devia comer o que tem na colher, como acabou de se ver, e desata também a cantar quando é hora de dormir. Conquanto isto chegasse para demonstrar o quão tolinha é a criança que assim canta, é preciso notar que a mesma secção do poema começa com a confidência de que a inspiração lhe vem quando, depois de apagadas as luzes, bate com a cabeça em qualquer lugar: “no círculo de pétalas veementes cai a cabeça – / e as palavras nascem”. É, pois, possível que, tentando levantar-se para dançar enquanto cantava no escuro, Herberto Helder tenha tropeçado e batido com a cabeça no chão. Que tenha visto flores em vez de estrelas, que é o que costuma ver quem bate com a cabeça, não deve surpreender, visto que nos seus delírios, como se viu acima, a astronomia aparece misturada com a botânica. Mais uma vez se demonstra que não há diferença, para uma criança tolinha, entre fazer poemas e alucinar.
É por Herberto Helder confundir todas estas coisas com inspiração, em suma, que os seus poemas são incompreensíveis. E, como qualquer criança que, considerando-se incompreendida, arranja para se convencer da sua sensatez a auto-justificação da malícia do mundo que a rodeia, a criança tolinha que Herberto Helder é, considerando-se incompreendida por não andar atrás de raparigas quando sente vontade, não comer quando está à mesa e não dormir quando lhe apagam as luzes, passa o tempo a tentar convencer-se de que é inspirado para desculpar a irracionalidade do que faz. Dão conta dessa auto-indulgência, por exemplo, dois versos de “Narração de um homem em Maio”, o poema final de A Colher na Boca: “e tudo calei como experiência / de um sono inspirado”. Em resposta à perplexidade dos que assistem às tolices a que se entrega, Herberto Helder cala-os, pois, dizendo que não é tolinho por capricho ou birra, mas por inspiração.
Os seus versos caracterizam-se, portanto, pela convicção de que a poesia não pertence ao reino da razão mas ao do misticismo, e é em delinear as fronteiras dos dois reinos, como agrimensor que empregassem para o efeito, que Herberto Helder se empenha frequentemente. É dessa divisão territorial, e de nada mais, que trata a quarta secção de Poemacto (1961). A inteligência que lhe interessa não é a que lhe permita perceber o mundo para que nele viva como outra criança qualquer; como tiraninha que já se tinha percebido que era, esta criança tolinha quer o mundo só para ela. Quando não é “cruel” ou “violenta” ou “terrífica”, a sua inteligência é “uma selvajaria celeste sobre a minha respiração” e serve sobretudo para recriar ferozmente o mundo insuficiente que encontra à sua volta: “eu penso mudar estes campos deitados, criar / um nome para as coisas”. Para Herberto Helder, o poeta é, pois, um revolucionário insatisfeito com aquilo que o rodeia e a quem compete não só mudar as coisas como dar-lhes um nome diferente depois de mudadas. Leia-se, para que não haja dúvidas, que planos de doido tem para o mundo:

Eu penso mudar estes campos deitados, criar
Um nome para as coisas.
Onde era estábulo, na doce morfologia,
Fazer
Com que as estrelas mugissem e as poeiras
Ressuscitassem.
Dizer: rebentem os taludes, enlouqueçam as vacas,
Que minha inteligência se torne terrífica.
Unir a ferocidade da noite ao inebriado
Movimento da terra.
Posso mudar a arquitectura de uma palavra.
Fazer explodir o descido coração das coisas.
Posso meter um nome na intimidade de uma coisa
E recomeçar o talento de existir.

Como muitos dos revolucionários que a História fez questão de eternizar, é possível que Herberto Helder seja mais doido do que revolucionário. Dada a inclinação para confundir alhos com bugalhos, de que tantos exemplos já dei, que assim seja não é sequer surpreendente. O próprio vocabulário utilizado nesta estrofe dá a entender que o poeta, num dos seus delírios místicos, se toma por bombista, pois quer “rebentar” e “explodir” com coisas. Chamar-lhe doido não é, por isso, mais ofensivo do que verdadeiro. Herberto Helder não gosta particularmente do mundo que o rodeia, possivelmente por não lhe compreenderem as manias, e deseja mandá-lo pelos ares. Não tendo explosivos com que fazê-lo, tenta explodir com a linguagem. Ao mudar a arquitectura às palavras, cria um novo mundo, como um Colombo que, pela pouca habilidade para a marinhagem, criasse para si as Américas que não achava. Nesse novo mundo só seu, assim mais criado do que achado, Herberto Helder pode então “recomeçar o talento de existir”. E, acima de tudo, pode recomeçar a existir sem que lhe digam que não é assim que se existe, que apetites carnais não são versos a pedir para serem escritos, que as colheres não servem para ficar na boca mas para dar continuidade à chatice de comer, que o sono é preferível às cantorias nocturnas. No novo mundo de Herberto Helder, onde as palavras significam o que ele quiser que elas signifiquem, ninguém lhe diz que acasale, que coma ou que durma; é ele quem decide quando deve fazer cada uma dessas coisas. Nesse novo mundo, tudo é perfeito. Pena é que, dada a falta de lógica e de inteligibilidade que o caracteriza, não seja habitável senão pelo próprio poeta.   
 A inspiração de Herberto Helder é uma desculpa para a irracionalidade dos seus versos: eximindo-se da responsabilidade de os escrever, deixa de ter de responder pela falta de sentido que eles denotam. Como criança tolinha que é, pede aos leitores que se compadeçam dele e que lhe leiam as tolices compreendendo que ele não tem culpa delas. E os leitores comuns, que só seriam bons se fossem espartanos, compadecem-se e aceitam-lhe as tolices porque, apesar de incompreensíveis, são genuínas. Herberto Helder tornou-se o poeta em que se tornou porque, a partir de dada altura, muito possivelmente por não se perceber rigorosamente nada da poesia do único poeta do século passado que seria importante ler e por não se perceber, como disse outro bardo, que qualquer tolo pode manejar palavras, se convencionou que a melhor poesia era a mais genuína. Norteados por tal falácia, os poetas portugueses deram em obcecar-se com a expressão genuína, isto é, com a expressão linguística que mais genuinamente exprimisse a intimidade abstracta do que são, e partiram em busca de Américas que logicamente não podiam achar.
Jamais se poderá exprimir o inexprimível, e nenhum ataque epiléptico, por mais genuíno que seja, algum dia será um poema. Não obstante, a poesia moderna foi-se tornando cada vez mais parecida com epilepsia, o que é outra maneira de dizer que se foi tornando o que não é. Ao basear os seus critérios de beleza na genuinidade da expressão, quem quer que apreciasse poesia viu-se forçado a coroar de louros não aqueles que sabiam compor poemas mas aqueles cuja obscuridade das palavras mais os fizesse parecer genuínos. Ora, apreciar poemas de crianças tolinhas, poemas que consistem em passar para o papel, sem o filtro do intelecto, o que quer que lhes venha à cabeça, não é muito diferente de apreciar um homem a contorcer-se no chão e a espumar da boca. E só se salva da morbidez do espectáculo quem tem os escrúpulos de saber que a poesia é outra coisa.
Por surpreendente que pareça, poucos são os que se salvam. Quando, há umas semanas, Herberto Helder morreu, houve quem dissesse, insultando os inteligentes com a estupidez de assim o dizer, que morrera o maior poeta português depois de Luís de Camões. Outros, mais comedidos, mas igualmente estúpidos, preferiram vaticinar-lhe uma fama póstuma semelhante à de Fernando Pessoa. Assim pensam, uns e outros, porque os convenceram de que a subtileza extremada da língua, a nitidez, a precisão conceptual e plástica e mais maravilhas do género, atributos que não significam nada mas que todos reconhecem na poesia de Herberto Helder, são coisas que merecem a estridência de assim pensarem. A uns e outros seria preciso mostrar, talvez com o colete de forças que lhes convém, que não são. Não pertenço, tanto por respeito a quem é poeta como a quem sofre de epilepsia, à classe dos doidos que assim dá em confundir coisas tão diferentes. Como fiz notar, Herberto Helder não passou de uma criança tolinha à roda da qual outras crianças, feitas tolinhas por influência das muitas tolices que foi dizendo, deram em achar que fazer poesia era o mesmo que babar-se. Que os ofendidos desculpem o crítico, portanto, quando ele se vê forçado a afirmar que o poeta não faleceu a tempo.
 

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